Alteração do quadro fático em que se fundou o pacto de demanda contratada autoriza a cobrança da energia elétrica com base na potência efetivamente utilizada: impacto econômico oriundo da pandemia do coronavírus

            A pandemia oriunda do coronavírus afetou diversos cenários além da saúde, mas, especialmente, o econômico, considerando a paralisação e/ou diminuição de grande parte das atividades dos setores comercial e industrial. Resultado disso foi o encerramento de diversos negócios que não estavam preparados para uma crise dessa magnitude, bem como aqueles com diminuta margem de lucro, cujo prejuízo de um único dia das atividades impacta negativamente o fechamento do mês.

            A verdade é que mesmo as empresas com reserva financeira para absorver os prejuízos de certo período com as portas fechadas não esperavam enfrentar, além das limitações de funcionamento, a queda do consumo em massa, e os reflexos diretos dessa queda em seus faturamentos.

            A situação acima descrita demonstra a brusca alteração do quadro fático anterior e sua completa imprevisão. Foi nesse cenário que inúmeros contratos, com os mais variados objetos, se tornaram sobremaneira onerosos, levando empresários ao inevitável inadimplemento.

            Nos contratos que versam sobre fornecimento e consumo de energia elétrica não foi diferente. Empresários que atuam mediante alto consumo de energia elétrica, em alguns casos, viram tal necessidade reduzida a zero. Ocorre que tais empresas, em situação normal de funcionamento e em virtude da imprescindibilidade da energia elétrica, contratam junto à concessionária de energia a chamada “demanda de potência”, pacto este que exige o pagamento da potência disponível, ainda que não haja o efetivo consumo. Para melhor compreensão, cabe delinear os diferentes tipos de demanda de energia elétrica.

            Fundamental distinção entre demanda de potência contratada e demanda de potência efetivamente utilizada

            Na modalidade definida como demanda contratada, a demanda de potência ativa é obrigatória e continuamente disponibilizada pela distribuidora, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência fixados em contrato, e que deve ser integralmente paga, seja ou não utilizada durante o período de faturamento, expressa em quilowatts (kW).

            Quando há consumo de energia elétrica, há consumo de energia com certa potência. Potência é um atributo da energia elétrica relacionado não propriamente com a quantidade consumida, mas com a intensidade do consumo no tempo.

            Com base na definição técnica contida na Resolução ANEEL 414⁄2010 (que estabelece as “condições gerais de fornecimento de energia elétrica”), potência ativa é a “quantidade de energia elétrica solicitada por unidade de tempo, expressa em quilowatts (kW)” (art. 2º, LIX).

            A potência elétrica, portanto, é componente da operação de consumo de energia. Com efeito, o consumo se dá, invariavelmente, em certa quantidade de energia, medida e expressa em unidades de quilowatts-hora (kWh) e com certa intensidade no tempo, o que demanda energia com a correspondente potência elétrica, medida e expressa em quilowatts (kW).

            O que determina a quantidade e a potência elétrica a serem utilizadas no consumo da energia são as necessidades do consumidor: há consumidores que demandam pequena quantidade e em pequena intensidade de tempo, há os que demandam maiores quantidades mas em menor intensidade, há os que demandam pequenas quantidades mas em maior intensidade e há os que demandam grandes quantidades e com grande intensidade.

            Ademais, justamente pela diversidade dos perfis e do modo de consumir energia, o sistema normativo, ao disciplinar o fornecimento de energia e a fixação das correspondentes tarifas, dividiu os consumidores em dois grandes grupos, segundo as respectivas demandas de potência. Dispõe, a propósito, o Decreto n.º 62.724⁄89 (que “estabelece normas gerais de tarifação para as empresas concessionárias de ser viços públicos de energia elétrica”):

Art. 2º. Para fins de análise de custo do serviço e fixação de tarifas, as classes de consumidores de que trata o art. 177, Capítulo VII, Título IV, do Decreto nº 41.019, de 26 de fevereiro de 1957, deverão ser grupadas da seguinte forma:

1 – Grupo A; consumidores ligados em tensão igual ou superior a 2.300 volts;

2 – Grupo B; consumidores ligados em tensão inferior a 2.300 volts.

            Dispõe também o referido Decreto, em seu art. 9º:

Art. 9º. O fornecimento de energia elétrica a unidades consumidoras do Grupo A, com tarifas reguladas, deverá ser realizado mediante a celebração de contrato entre o concessionário ou permissionário de serviço público de energia elétrica e o respectivo consumidor, e às unidades consumidoras do Grupo B será realizado sob as condições do contrato de adesão.

            Como se vê, o fornecimento de energia elétrica é sempre precedido de um contrato entre concessionária e consumidor, contendo, entre outras cláusulas, a da demanda de potência elétrica, sendo que os consumidores do Grupo B (que demandam menor potência) celebram um contrato de adesão e os demais, do Grupo A (que demandam maior potência), celebram um contrato específico, para atender às suas específicas necessidades.

            As cláusulas e condições dos contratos do Grupo A são as previstas no art. 62 da Resolução ANEEL 414⁄2010, entre elas as que dizem respeito à potência de energia elétrica demandada pelo consumidor e que deverá ser disponibilizada pela concessionária.

            Nesse sentido, é nítida a distinção entre demanda de potência contratada e demanda de potência efetivamente utilizada.

            Impende ressaltar a definição de demanda contratada: é a demanda de potência ativa, expressa em quilowatts (kW), a ser “disponibilizada pela concessionária” ao consumidor, “conforme valor e período de vigência fixados no contrato de fornecimento”, que pode ou não ser “utilizada durante o período de faturamento”.

            Demanda de potência contratada, como se vê, não é demanda utilizada, e, se não representa demanda de potência elétrica efetivamente utilizada, não representa energia gerada e muito menos que tenha circulado.

            É salutar, portanto, a devida distinção entre demanda de potência contratada e demanda de potência efetivamente utilizada, para então verificar o inegável  desequilíbrio contratual oriundo da pandemia atualmente enfrentada e a consequente impossibilidade de uma empresa afetada pela paralisação e/o diminuição significativa de suas atividades continuar arcando com uma obrigação que foi avençada em cenário completamente distinto do que se verifica no momento.

            O impacto da manutenção da cobrança da demanda contratada neste momento de crise oriundo da pandemia do coronavírus – onerosidade excessiva – situação de força maior

            A discussão que vem sendo levada ao Judiciário por diversas empresas se refere à exigência da obrigação de pagamento oriunda do contrato de demanda por elas firmado com as concessionárias de energia de seus respectivos Estados de estabelecimento, mesmo diante da crise mundial enfrentada e das situações verificadas em todos os setores, especialmente o da economia, decorrentes da imposição de isolamento social.

            Em razão da pandemia, o governo do Estado de Goiás publicou o Decreto n.º 9.633, de 13 de março de 2020, definindo medidas restritivas para o enfrentamento da Emergência de Saúde Pública decorrente do Coronavírus (COVID-19).

            Dentre as medidas, várias delas interferiram diretamente no funcionamento e, consequentemente, no faturamento de empresas dos setores comercial e industrial situadas no Estado de Goiás. O mencionado Decreto estabeleceu, em seu art. 2º, V, o seguinte:

Art. 2º. Para o enfrentamento inicial da emergência de saúde decorrente do coronavírus, ficam suspensos:

(…)

V – toda e qualquer atividade comercial, industrial e de prestação de serviços, considerada de natureza privada e não essencial à manutenção da vida; (…)

            Tal disposição foi reiterada pelos Decretos subsequentes e, posteriormente, foi publicado o Decreto n.º 9.653, de 19 de abril de 2020, que manteve medidas restritivas ao funcionamento de empresas de diversos ramos de atividade. Já neste ano de 2021, foi publicado o Decreto n.º 9.778/2021, que “Prorroga o prazo de que trata o Decreto no 9.653, de 19 de abril de 2020, e dá outra providência”. A perspectiva atual é que o período de situação de emergência na saúde pública no Estado de Goiás seja novamente estendido, considerando que o calendário de vacinação ainda não apresenta resultados suficientes para desacelerar a contento a contaminação pelo vírus.

            A propósito do impacto da COVID-19 na economia, a filial espanhola da renomada empresa de Auditoria e Consultoria Empresarial Deloitte Touche Tohmatsu Limited realizou estudo que faz projeção de recuperação econômica somente a partir de janeiro de 2021 – o que ainda não se verificou.

            Trazendo essa projeção para a realidade brasileira, especialmente para a situação do Estado de Goiás, sabe-se que o tempo de recuperação dos setores comercial e industrial poderá se prolongar por período bem maior do que o projetado para o país Europeu.

            Diante desse cenário caótico, é necessário que o Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário), juntamente com a iniciativa privada e a sociedade civil organizada, se mobilizem no sentido de tomar medidas de caráter emergencial com vistas a minimizar os efeitos da grave crise atualmente enfrentada.

            Nesse contexto, a despeito dos impactos negativos suportados pelos setores comercial e industrial no âmbito financeiro, as despesas para manutenção da atividade empresarial em cada um deles permanecem inalteradas, o que causa enorme desequilíbrio financeiro e resultará em inevitável inadimplência – para não falar no encerramento de empresas, que já verificamos na prática, infelizmente.

            Atualmente, os estabelecimentos estão atravessando sérias dificuldades para honrar com várias de suas obrigações, inclusive com as contas de energia. Questiona-se, então, a razoabilidade da exigência do pagamento de uma demanda de energia preestabelecida, que se mostrava necessária no contexto contemporâneo à assinatura do contrato, mas que, no cenário atual, não é utilizada ou teve brusca queda de consumo. A resposta é negativa, se levarmos em conta o caráter imprevisível da situação enfrentada em nível mundial e, mais ainda, considerando o prejuízo e a condenação de empresas ao encerramento, caso seja mantida a obrigação principal sem qualquer modificação.

            A propósito destas afirmações, é fundamental conferir a redação do art. 393 do Código Civil, in verbis:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

            O dispositivo acima transcrito, interpretado de forma sistemática com o art. 396 do mesmo Diploma, afasta a incidência de mora neste período em que enfrentamos a pandemia. Apesar de evidente, não é demais ressaltar que as empresas que antes atuavam com alto consumo de energia, em nada contribuíram para a suspensão das atividades comerciais e industriais. Ao contrário, toda sociedade se viu obrigada, seja por normativa Estadual ou Municipal, a cumprir o isolamento/quarentena, visando a contenção do contágio pela COVID-19.

            Nesse contexto, os empresários experimentam situação deveras inesperada e totalmente imprevisível, em que o isolamento e fechamento/suspensão dos setores comercial e industrial se fizeram imprescindíveis.

            Os dispositivos legais que regem as obrigações contratuais são claros em definir caso fortuito e força maior como situações em que se verifica determinada ação com consequências e efeitos imprevisíveis e, portanto, impossíveis de evitar ou impedir. Deste modo, podemos afirmar com certeza, que os impactos sofridos hoje pelos setores que movimentam a economia caracterizam-se como caso fortuito e de força maior.

            Os próprios contratos firmados entre as empresas consumidoras e as concessionárias de energia, muitas vezes, trazem previsão relativa às hipóteses de caso fortuito ou de força maior, de modo a embasar a suspensão ou extinção do pacto sem ônus para qualquer das partes. Soma-se a isso, ademais, a obrigatoriedade legal de observância da boa-fé contratual. Vejamos o que dispõe o art. 422 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

            Sobre a boa-fé objetiva, mencionada no art. 422, ensinam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

“…cláusula geral, ao mesmo tempo em que se consubstancia em fonte de direito e de obrigações, isto é, fonte jurígena, assim como a lei e outras fontes.” (Código Civil Comentado, 11ª ed, RT)

            À luz da boa-fé objetiva, tem-se que a modificação das circunstâncias-base do negócio jurídico em questão autoriza a suspensão da obrigação contratual de pagamento da demanda contratada, enquanto perdurar a crise que afeta o funcionamento dos setores comercial e industrial. Nesse diapasão, trago novamente o entendimento doutrinário dos professores anteriormente citados, na mesma obra:

“Se as circunstâncias que existiam como fundamento do contrato forem profundamente alteradas depois de sua estipulação, circunstância que faria com que as partes não concluíssem o contrato ou o concluísse com outro conteúdo se tivessem previsto essa modificação, pode-se exigir a modificação e adequação do contrato, se e enquanto, tendo em conta as referidas circunstâncias do caso concreto, e em particular os riscos previstos pelo contrato ou pela lei, não se possa razoavelmente impor a uma das partes permanecer vinculada a um contrato de conteúdo não modificado. (…)”

            A gravidade da situação, que toma grande espaço na mídia e em todos os meios de comunicação, dispensa maiores apontamentos. Fato é que, de portas fechadas e com o faturamento interrompido, as empresas estão em manifesta circunstância que não podiam prever ou mesmo imaginar de antemão, de modo que, enquanto perdurarem os efeitos da crise – assim como a previsão contratual ora discutida – não têm condições de seguir com o pagamento normal de uma demanda de energia elétrica que não é utilizada.

            Diante dessas ponderações, temos que a providência que melhor atende à relação contratual em questão é a cobrança da demanda segundo a energia efetivamente consumida, de forma diversa do que prevê o contrato, porém, condizente com os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e com o parâmetro de justiça e legalidade, diante de tão delicada situação imprevisível que afetou toda a sociedade em escala mundial.

REFERÊNCIAS

COVID-19 – Impacto y Escenarios de recuperación en Consumo y Distribución – Deloitte.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado, 11ª ed, RT.

QUINTELLA, Felipe. Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior? Gen Jurídico, 2020. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2020/04/01/coronavirus-caso-fortuito-ou-forca-maior/>. Acesso em: 30 de abril de 2021. Resolução Normativa ANEEL n. 414, de 9 de setembro de 2010 (Diário Oficial de 15 de set. 2010, seção 1, p. 115).



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