A ESSENCIALIDADE DE BENS NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL À LUZ DA LEI DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.

.                  Diante da crise empresarial, é possível que a empresa busque como meio de soerguimento o instituto recuperação judicial, previsto na Lei 11.101/2005[1], com vistas à manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, preservando, portanto, a sua função social, promovendo, outrossim, o estímulo à atividade econômica, tudo conforme preceitua o respectivo artigo 47 da Lei 11.101/05[2].

.                  Na recuperação judicial, priorizam-se os interesses sociais e econômicos da manutenção das atividades da empresa, em detrimento dos interesses de um ou alguns credores. Acima dos interesses dos credores e devedores, o instituto da recuperação judicial tutela interesses gerais e coletivos, públicos e sociais envolvidos na manutenção da empresa.

.                  De acordo com a Lei 11.101/05[3] a preservação da empresa é o fundamento basilar da Recuperação Judicial, e a satisfação do credor fiduciário não pode estar acima do imperativo maior que é a preservação da empresa. Nesse sentido, os bens essenciais à atividade empresarial merecem tratamento diferenciado quando da ocorrência de ações de execução de contratos e de busca e apreensão com base em cláusulas de alienação fiduciária.

.                  Na hipótese de uma empresa que tenha entre seus débitos contratos com alienação fiduciária, ingressar com pedido de recuperação, e este ser deferido, ficam excluídos dos efeitos da recuperação os créditos e os bens móveis e imóveis garantidos pela cláusula de alienação fiduciária. Entretanto, fica vedada, nos termos da parte final do § 3º do art. 49 da Lei 11.101[4], a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial, durante o período de suspensão disposto no §4º do art. 6º.

.                  No entendimento de Melhim Namem Chalhub[5], exclusão de que trata o § 3º do art. 49 da Lei 11.101/2005 alcança a garantia fiduciária constituída sobre bens móveis, imóveis e sobre os direitos e títulos de crédito. É que, como já visto, a constituição de garantia fiduciária, importa na retirada do bem ou do direito do patrimônio do devedor e na sua transmissão ao patrimônio do credor, aí permanecendo segregado e imune aos efeitos da insolvência tanto do credor como do devedor, com vistas ao cumprimento de sua destinação.

.                  São inúmeros casos de instituições financeiras que, em total desrespeito ao instituto da preservação da empresa em recuperação judicial, buscam de forma arbitrária a satisfação dos seus créditos, utilizando-se de inúmeras artimanhas para fazer cumprir buscas e apreensões de bens que são essenciais à atividade econômica da empresa.

.                  Tais instituições financeiras que buscam a satisfação dos seus créditos a todo custo, não respeitando os demais credores, são conhecidas e foram previstas no modelo americano de recuperação, são chamados credores resistentes (hold out), e tais credores podem ser responsáveis pela liquidação da atividade, inviabilizando o recebimento dos demais credores[6].

.                  Tais situações tem sido levadas ao conhecimento do Poder Judiciário, que de maneira coerente, tem aplicado o entendimento de que os bens essenciais para o desempenho das atividades da empresa não podem sofrer busca e apreensão pelos agentes fiduciários, mesmo após o período de suspensão, em razão de serem necessários ao cumprimento do plano de recuperação e a preservação da empresa e sua função social.

.                  A essencialidade, dos ativos das empresas em recuperação judicial, não foi tecnicamente definida pelo legislador, pois este suporte fático é peculiar ao caso concreto. Porém, não restam dúvidas de que é um comando normativo de proteção dos ativos quando realmente essenciais à atividade empresarial. Ainda que não se tenha uma definição legal do que é essencial, deve-se levar em conta alguns pontos para a análise da essencialidade de um ativo.

.                  Via de regra, um ativo deve efetivamente ser operacional ou gerador de fluxo de caixa positivo, a simples propriedade não torna um ativo essencial. Por exemplo: um caminhão sucateado de uma transportadora sem condições de trafegar e gerar receita para empresa em recuperação não pode ser considerado essencial à atividade econômica. Um ativo somente pode ser considerado essencial se da sua utilização houver geração de fluxo de caixa positivo para fazer frente ao pagamento dos credores, por exemplo: uma retroescavadeira de uma construtora pode ser considerada essencial pois mesmo não sendo utilizada pela empresa recuperanda, pode ser alugada e gerar caixa positivo[7].

.                  Cite-se o caso de empresas transportadoras, onde pode acontecer que grande parte da frota de caminhões seja financiada e gravada com alienação fiduciária. Nesse caso, a aferição da essencialidade deve ser feita considerando o quanto o caminhão é essencial para a atividade econômica. Ora, tal aferição é de fácil constatação haja vista que o caminhão deve ser considerado essencial para a atividade econômica da empresa. Se o veículo é retirado da empresa, como ela poderia alcançar seu objetivo social? Como poderia gerar receita suficiente para cumprir o estabelecido no plano de recuperação?

.                  No caso do reconhecimento da essencialidade dos bens gravados com alienação fiduciária e a sua manutenção na posse da empresa em recuperação mesmo após o prazo de suspensão do §4º do artigo 6º, os tribunais tem adotado o entendimento de que a preservação da função social da empresa deve ser respeitada em detrimento aos interesses exclusivos de credores e devedores.

.                  Assim, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tem entendido que o princípio maior da preservação da atividade econômica da empresa em recuperação, deve prevalecer nos casos em que o credor fiduciário busca a retomada de bens essenciais ao soerguimento da empresa. Apesar de críticas acerca de uma eventual insegurança jurídica, o STJ permanece imune aos críticos e mantém seu posicionamento, em favor da função social da empresa. Veja-se:

CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. BEM MÓVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. ATIVIDADE EMPRESARIAL. ESSENCIALIDADE DO BEM. AFERIÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. 1. Ainda que se trate de créditos garantidos por alienação fiduciária, compete ao juízo da recuperação judicial decidir acerca da essencialidade de determinado bem para fins de aplicação da ressalva prevista no art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, na parte que não admite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial. 2. Impossibilidade de prosseguimento da ação de busca e apreensão sem que o juízo quanto à essencialidade do bem seja previamente exercitado pela autoridade judicial competente, ainda que ultrapassado o prazo de 180 (cento e oitenta dias) a que se refere o art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005. 3. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo Cíveis e Comerciais da Comarca de Barreiras/BA.[8] (grifo nosso)

.                  Atentos a necessidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, têm se amoldado ao fato social e entendendo que, muito embora a Lei estabeleça um parâmetro, na prática a proteção exclusiva do credo fiduciário pode levar a recuperanda à extinção. Assim, estes tribunais têm aplicado o preceito jurídico da proteção do ativo essencial à continuidade da atividade econômica da empresa em recuperação, mesmo quando extrapolado o prazo de suspensão disposto no § 3º do artigo 49 c/c §4º do artigo 6º da Lei 11.101/05.

.                  Essa evolução da jurisprudência é de fundamental importância para a sociedade, tendo em vista que a manutenção da atividade econômica da empresa em recuperação, balanceia os interesses econômicos e sociais que envolvem um processo de recuperação, possibilitando o soerguimento da empresa em dificuldade, que é o principal objetivo da Lei 11.101/05.

.                  Diante do entendimento doutrinário e jurisprudencial que tem sido construído, o preceito jurídico da proteção do ativo essencial à atividade econômica da empresa, o que se esperava ser objeto da modernização da Lei 11.101/05, de modo a promover sua adequação à realidade factual das empresas que necessitam manter os bens gravados com alienação fiduciária sob sua posse para manutenção de suas atividades. Ocorre que a tão esperada modernização ocorreu através da Lei 14.112/20 que entrou em vigor em 23/01/2021.

.                  A tão esperada modernização aconteceu, porém em nosso sentir o legislador foi tímido ao enfrentar o tema da proteção dos ativos essenciais gravados com alienação fiduciária, pois apesar de incluir menção acerca da proteção de bens essenciais no §7-B do artigo 6˚, o legislador deixou de tratar sobre o tema, que é de extrema importância para dinâmica proteção dos negócios frente à agressividade dos credores fiduciários.

[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.101, de 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 01 de mar. de 2019.

[2] __________. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.101, de 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 01 de mar. de 2019.

[3] __________. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.101, de 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 01 de mar. de 2019.

[4] __________. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.101, de 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 01 de mar. de 2019.

[5] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: Negócio fiduciário. 5. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[6] COSTA, Daniel Carnio. Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/InsolvenciaemFoco/121,MI293014,31047-Teoria+da +essencialidade+de+bens+e+as+travas+ bancarias+na+recuperacao. Acesso em 23/02/2019.

[7]__________________. Proteção dos ativos essenciais da recuperanda. In: MENDES, Bernardo Bicalho de Alvarenga. [Org.] Aspectos polêmicos e atuais da lei de recuperação de empresas. Belo Horizonte, Editora D`Plácido, 2016.p.443

[8] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. CC 121.207/BA, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 08/03/2017, DJe 13/03/2017.



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